quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A Verdadeira Filosofia de Tasco

Enquanto Provedor do Leitor da “Um Café”, cargo que aceitei a troco de quinze mil euros mensais, vejo-me na obrigação de dar mais atenção aos mails que nos chegam que aquela que realmente merecem. Na verdade, passados nem três minutos de os ler lembro-me tão bem da maioria deles como da aula de Social Studies que tive no dia 21 de Novembro de 1976 no meu liceu em Ipswich. No entanto, e para sossegar o meu prezado editor, aqui vão três excertos de três cartas que recebemos esta semana escolhidas aleatoriamente.

Na vossa crónica Filósofos de Tasco estão a denegrir algo do mais genuíno e rico que há em Portugal: o tasco.” – Augusto Peres Inácio, Porto

Filósofos de Tasco não passa de um exercício de esnobeira filisteia. Uma verborreia insultuosa para a nossa classe popular, aí representada pelo pior da nossa sociedade. Ao senhor Rupert Tempest, ou quem quer que se esconda por detrás desse nome ridículo, aconselho-o a visitar realmente um tasco, a abrir bem os olhos e os ouvidos – se precisar leve um intérprete – e a reproduzir aqui as conversas reais dessas universidades de vida.” – Luís Carrascalão, St. Tirso

A crónica do senhor Tempest encontra-se pejada de figuras bêbedas, violentas e estúpidas, repetindo ad nauseam estereótipos falsos e danosos para a dignidade do nosso povo, para não dizer da nossa espécie.” – Alcino Teixeira, Porto

Depois do ver no dicionário o significado de pejado resolvi acatar as recomendações que me foram dirigidas pelos leitores e reproduzir aqui fielmente um episódio que presenciei num dos muitos tascos que frequento – sem intérprete – e que representa a “verdadeira filosofia de tasco” que, reconheço, tenho mantido oculta nas crónicas que tenho vindo a escrever para a revista “Um Café”. Aqui vai:

Era uma noite de semana como outra qualquer. O fumo enchia o espaço tornando-o cinzento e quase irrespirável. Estranhamente ninguém falava enquanto o grupo do costume lambia alternadamente um baralho de cartas. Sentia-se uma forte tensão no ar, como se todos soubessem que algo de sublime estava prestes a acontecer.
Encostado a uma parede do fundo percebia-se um vulto que, ao longe, parecia um velho bêbado e, ao perto, um pipo velho entornado em cima da mesa. Ao mesmo tempo que me sentei ao seu lado e pedi um “cheirinho”, Lino Granja levanta-se da mesa do grupo da bisca lambida e bate inadvertidamente com a cabeça no suporte de ferro da televisão. “Ah, como dói!”, exclama, “como dói encontrar-me lançado na existência, como uma pedra projectada por uma mão que não conhece.”


Por essa altura Fernando Mealhada saía do sanitário, onde estivera uma boa meia hora a depurar os intestinos, quando uma epifania o atinge. Apercebe-se de que é impossível ter a certeza se existe alguma coisa de real fora da sua mente. “Para quê pagar a conta”, pensou, “se o mundo inteiro, o tasco incluído, não é mais que uma projecção da minha imaginação?” Ainda não se tinha encostado a porta do sanitário atrás de si e já o Mealhada disparava porta da rua fora com quinze euros em cerveja por pagar.
Vendo isto, Julinho Seixas, que além de um realista empedernido era também amigo do dono do tasco, corre atrás deste solipsista encartado, apanha-o pelo colarinho da camisa e puxa-o de novo para dentro do tasco onde, pacientemente, procura provar-lhe a existência da realidade fora da sua mente, partindo-lhe os ossos da cara de encontro ao balcão.

Mealhada preparava-se para refutar o Seixas apontando a manifesta falácia ad hominem em que a sua argumentação incorria, mas este último não lhe deu qualquer hipótese de pôr em prática a sua conhecida retórica e, para provar definitivamente o seu realismo metafísico, saca da navalha e rasga de um golpe a jugular do pobre Mealhada.
Enquanto gorgolejava saliva e sangue ainda o ouvimos dizer estas palavras que depois mandámos registar na sua lápide e que o projectaram directamente para o panteão dos grandes filósofos mortos: “A morte não é mais que um sonho do qual não se acorda. A vida...glub...glub...glub.”

Felizmente para o Mealhada que Descartes tinha razão! O corpo e a mente são mesmo duas entidades distintas. E foi graças a esta descoberta que pudemos continuar noite dentro a beber copos com o Mealhada enquanto a sua res extensa jazia numa maca a caminho da morgue. Pela primeira vez em muitos anos o Mealhada teve uma boa desculpa para sair do tasco sem pagar: tinha deixado a carteira no corpo.

Rupert Tempest

- texto publicado na revista Um Café em Maio de 2008

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