quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O Amor no Tasco

Corria o ano de 1984. Eduardo Pereira tinha a seu cargo a pasta da Administração Interna do IX Governo Constitucional e o Wonderbra só seria introduzido na Europa dez anos mais tarde, em 1994.

Era uma tarde de sábado e estava eu sentado contra a parede do fundo de um botequim mal amanhado, do qual já nem sequer me lembro o nome, a ler na diagonal as obras completas de Platão directamente do grego ático. A luz da sala era fraca, pelo que me via obrigado a iluminar a leitura com velas e copos de gin tónico. Ao desenrolar o manuscrito do diálogo “O Banquete” deparei-me com o seguinte mito contado por Aristófanes a Sócrates e aos restantes convidados de Ágaton:

Segundo Aristófanes no início dos tempos a nossa natureza era dupla, “uma única cabeça, onde assentavam as faces coladas em sentido oposto; quatro orelhas; órgãos genitais em número de dois; e tudo o mais que a partir daqui se possa imaginar.” Ainda segundo Aristófanes, esses primeiros seres humanos, ao mesmo tempo masculinos e femininos, eram “dotados de uma terrível força e resistência” capazes mesmo de desafiar os próprios deuses.
Foi então que Zeus, para enfraquecer a humanidade, não esteve com meias medidas e cortou os homens ao meio “exactamente como se cortam sorvas para as pôr em conservas.” Desde aí encontram-se os homens e as mulheres separados e é a nossa outra metade que infatigavelmente procuramos. “Essa busca incessante tem o nome de amor.” (189a-193)

Continuei por uns instantes a pensar que afinal não somos mais que linguados fora de água eternamente à procura da nossa outra metade, quando algo de surpreendente aconteceu. Levantei os olhos da leitura e lá estava ela, Criseíde, a minha outra metade, cinco mil anos depois, mesmo ali à minha frente atrás do balcão a servir vinho a copo a três unicórnios.
Estava muito diferente, a minha Criseíde. Já em nada se assemelhava à jovem esbelta e formosa que no tempo em que estávamos juntos servia de modelo aos melhores escultores da Época de Ouro Grega – nessas alturas eu punha-me de lado de forma a não aparecer na estátua.
Tinha engordado bastante e mudara o nome para Xana, para não dar nas vistas. Os seus peitos, outrora rijos e cheios, pendiam agora vazios e dengosos sobre o umbigo. No entanto é preciso ver que, como disse atrás, ainda estávamos em 1984. Dez anos mais tarde, já com Manuel Dias Loureiro como Ministro da Administração Interna, as coisas teriam sido diferentes, ou pelo menos não tão descaídas.
Criseíde ostentava agora uma dentadura com uma proeminência mais adequada às vicissitudes da savana africana que a uma utilização urbana comum – a menos que quisesse abrir latas de conserva com os caninos. Em vez da clássica e sempre sensual toga de linho branco, Criseíde envergava agora um fato de treino cor-de-rosa coçado, que também fazia as vezes de pijama. Tudo isto, como é óbvio, não ajudava nada ao meu processo de rememoração da minha amada. Mas se alguma dúvida ainda assolava o meu espírito, os três “gintós” que a seguir emborquei de golada dissiparam-na completamente. Era mesmo ela. Era Criseíde vestida de bimba.

Mas, ora bolas, deixemo-nos de esquisitices. Eu também já não era o belo jovem com abdominais de mármore que fazia furor nos ginásios de Siracusa. Estava cansado sozinho e pronto a reconquistar a minha metade perdida.

Ágil como Ulisses transpus num salto a muralha de Tróia que nos separava, derrubando com os pés a máquina de amendoins de cima do balcão. Estiquei os braços e apertei Criseíde contra o meu corpo com a volúpia própria de quem esteve mais de cinco mil anos afastado da sua amada. Durante quinze minutos voltámos ao nosso estado original de Ser uno e inseparável, agora um pouco mais suado e a tresandar a iscas de bacalhau.
Enquanto a minha cara procurava o seu colo, Criseíde berrava para que a soltasse. Seria apenas uma questão de tempo, pensava eu, até que me reconhecesse e também ela me abraçasse.

Foram precisos quatro garrafões de vinho arremessados contra a minha cabeça, cinco mancebos musculosos e um pé de cabra, para que eu e a minha amada nos voltássemos a separar. Criseíde, aflita, correu escadaria acima certamente para pedir protecção junto do Olímpo, ou simplesmente para limpar a minha baba do pijama.
Cá em baixo, não contentes em ter feito cumprir um desígnio divino, os cinco gandulos, fervorosos adeptos da violência gratuita, levaram-me para uma pequena viela nas traseiras do estabelecimento onde, durante algumas horas, se esforçaram arduamente por me transformar em puré.

Se isto me serviu de lição? Claro que sim. Agora, sempre que quiser emendar a mão de Zeus verifico prudentemente se sai de casa com o meu equipamento de guarda-redes de hóquei.

Rupert Tempest

- texto publicado na revista Um Café em Abril de 2008

Sem comentários:

Enviar um comentário