Entrei no tasco e dirigi-me à rapariga que atrás do balcão esfregava copos de finos com um pano que devia ter sido usado para limpar o eixo traseiro de um camião TIR.
“Queria falar com o CEO do estabelecimento, se faz favor.”
“O senhor Fialho não está. Foi ali ao Dia comprar chouriços... Se quiser pode falar com o filho.” Com a cabeça Filomena indicou-me a mesa onde se encontrava Quim “Calisto”, o jovem Executive Vice President, em reunião com alguns elementos do conselho de administração.
Pedi desculpa por interromper o seu board meeting e atirei: “Gostaria de escrever algo no vosso livro de láureas. Tenho de os congratular por manterem em actividade tão genuíno Tasco.”
Imediatamente me convidaram a sentar e, numa decisão administrativa relâmpago, nomearam-me Senior Consultant da “Adega do Fialho”.
Os três homens que me rodeavam eram o tipo de homens que a maioria das pessoas prefere ver arrumados nestes botequins, afastados da via pública, escondidos dos olhares decentes. Por momentos temi que lançassem uma OPA à minha máquina fotográfica, mas o teor alcoólico dos seus hálitos e a languidez dos seus gestos rapidamente me convenceu de que não corria qualquer risco financeiro eminente.
Apesar de tudo gosto de me aventurar nestes armazéns de podridão. Entro lá com a curiosidade de um coleccionador em busca de relíquias e, normalmente, venho embora com uma ou outra história para contar e com os sentidos embaciados.
Os meus colegas estavam nitidamente à vontade com a degradação que os rodeava. Dir-se-ia que faziam parte da mobília, se quisermos apelidar de mobiliário às três pipas carunchosas que decoravam o fundo do tasco
À minha frente o EVP ostentava o resultado de uma visita apressada a um dentista, com estabelecimento na Rua do Bonjardim, que lhe substituiu os dentes por buracos.
À minha direita o Division President, Tó “Rumba”, filho do primeiro casamento do senhor Fialho, trincava lascas de presunto sob o peso de quem acarreta a condição existencial de um semi-cadáver afogado em álcool etílico. Era óbvio que Tó “Rumba” apenas subira na hierarquia da empresa por ser filho de quem é.
De pé, o Senior Vice President, conhecido desde os tempos da tropa por “Farfalhas”, tio de Quim “Calisto” e irmão de Joaquim Fialho (o CEO dos chouriços) tentava passar alguns insights geniais sobre risk management. Não estava, claramente, a ter a aceitação dos outros elementos do board que tinham óbvias dificuldades em separar os seus acertados juízos sobre probabilidades, amostragens de curva normal, fontes de incerteza e linhas de comunicação e autoridade, das onomatopeias guturais típicas de quem procura regurgitar um porco.
Interrompendo-o intencionalmente dirigi-me à mesa, procurando ser o mais cuidadoso possível com as palavras: “Como é que conseguem manter aberto este estabelecimento em tão puro e genuíno estado? Já não há muitas casas como esta. A ASAE nunca vem cá visitá-los?”
“Vem sim, senhor doutor.” diz-me o EVP desdentado. “Todos os meses organizamos uma jogatana de sobe e desce. Vêm cá dois inspectores, sempre os mesmos. São péssimos jogadores e nós temos o cabo dos trabalhos em escolher os mais borrachões dos nossos clientes – às vezes temos de os ir descolar de dentro dos pipos – para jogarem com o dinheiro que os nossos accionistas vão deixando naquele mealheiro de madeira embutido na parede. Mas, de todas as vezes, lá saem os senhores inspectores aos tropeções, com os bolsos cheios de moedas de euro... e nós lá continuamos com o tasco aberto por mais um mês.”
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Março de 2008
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