quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Na Cabeça de Lino Bouças

Quando não estou no meu castelo a puxar o lustro às armaduras gosto de vaguear pelos tascos desta cidade com a curiosidade e o método de um psicólogo clínico que procura conhecer um pouco melhor o que vai dentro das cabeças dos seus frequentadores habituais.

O meu mais recente objecto de estudo foi Lino Bouças, um galego há muito emigrado no Porto. Vi-o pela primeira vez no tasco A Gandarela, ali na rua da Bainharia. Sentado sozinho ao balcão, tentava tirar um pedaço de presunto alojado no molar com a subtileza de um caterpilar a servir morangos numa vernisage.

Lino Bouças é viciado em engenharia pela FEUP e licenciado em heroína pelo Bairro do Lagarteiro. Há já vários anos que o vemos entrar e sair de clínicas de desintoxicação, mas as recaídas costumam levar a melhor. A ele se devem cinco das seis pontes que unem o Porto a Gaia.

Entrar na sua cabeça não é difícil, a dona Conceição faz lá as limpezas às terças-feiras e franqueia-nos a entrada. Na semana passada éramos uns dez lá dentro a jogar dominó, esforçando-nos por manter as peças direitas enquanto o Bouças subia a escadaria das Aldas tropeçando em todos os degraus e apoiando-se às paredes para manter uma postura que, em termos evolucionários, o colocava algures entre a lesma e o homo erectus.
Subia a custo os últimos degraus quando o derradeiro centilitro de Vermute lhe inunda o hipotálamo. Nessa altura o seu sistema sensório-motor decidiu regressar ao tasco para atestar, deixando o pobre do Bouças entregue à lei da queda dos corpos escadaria das Aldas abaixo e lançando as nossas peças de dominó num voo descontrolado contra as paredes do seu crânio quais pipocas numa panela a escaldar.
Nada que não estivéssemos à espera, pois todas as terças-feiras este cenário se repetia invariavelmente. Entre as gargalhadas do costume apanhámos as peças caídas, distribuímos mais uma rodada de minis, baralhámos de novo e íamos começar outro jogo quando aconteceu o inesperado. Lá fora uns miúdos resolveram divertir-se às custas do Bouças, amarrando-lhe um fio do norte à perna e prendendo-o ao camião do lixo que entretanto passava. Então foi ver o Bouças arrastado pela perna rua da Bainharia acima a tamborilar com a cabeça no granito ao longo de uns bons duzentos e cinquenta metros.
Agora as pipocas éramos nós, a ricochetear contra as paredes juntamente com as mesas, as cadeiras, os copos, as peças do dominó e as muletas do Pacheco, até que o fio se partiu em frente à estátua do Vímara Peres e acabámos todos empilhados num monte junto ao canto inferior do hemisfério esquerdo do Bouças, que ficou estendido no chão enquanto uns transeuntes o tentavam reanimar dando-lhe pontapés no estômago.

Levantámo-nos a custo e, depois de trinta minutos a tentar virar os joelhos do Pacheco para a frente, desistimos do jogo de dominó e resolvemos ir malhar umas bifanas à Filha da Mãe Preta na Ribeira. Alguns de nós ainda tentaram reanimar o Bouças dando-lhe pontapés no estômago mas ele não dava acordo e seguimos caminho.
Já tínhamos meio caminho andado quando, a descer as escadas do Barredo, um abanão tremendo que mais parecia um enorme sismo nos deitou por terra, deixando-nos novamente prostrados uns por cima dos outros. Ao que parece, alguém se lembrou de meter o Bouças na mala de uma furgoneta e de o levar numa corrida desenfreada para o hospital, não respeitando sinais vermelhos, sentidos proibidos, traços contínuos, passeios ou rotundas.
Nessa noite não houve bifanas para ninguém. Acabámos todos no Santo António, onde ainda hoje nos encontramos à espera que o Bouças saia de coma, ou então que a dona Conceição nos venha abrir a porta na próxima terça-feira.


Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Junho de 2008

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