quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O Senhor Américo

Tinha encontro marcado às sete mas já vinha atrasado. Deixei o carro em Belomonte e subi a correr a antiga escadaria da Sinagoga (da “esnoga”) agora da Vitória, até à rua das Taipas. Quando às sete e meia entrei no tasco combinado, “quem sobe as taipas, antes de chegar ao calvário”, o meu amigo já levava duas súrvias de avanço.
Insistia em chamar-me “amigo” apesar de ser apenas a segunda vez que nos víamos. Sentei-me à sua mesa com um tema na cabeça: a morte do Porto. A destruição física e humana da nossa cidade. “Se a morte dos homens é inevitável”, disse-lhe, “já a morte das cidades é lamentável.” Falámos de como o seu Porto está a fugir para os subúrbios: Gaia, Rio Tinto, Gondomar, Ermesinde. É para aí que estão a mandar os portuenses. Exilados, expatriados, despejados. “Metade dos meus amigos e conhecidos está agora em Vila d´Este”, disse-me.
Residente na Sé, “só putas e drogados”, atravessa todos os dias o rio da vila (aquele riacho encanado por baixo da Mouzinho da Silveira) para vir “matar o bicho” às tascas da Vitória (antiga judiaria do Porto), onde encontra alguns amigos e conhecidos que ainda resistem à deportação. Ao fim do dia lá volta para casa, no Cruzeiro à rua Escura, por entre putas e drogados, rua da Bainharia acima.
Tem um nome continental, o meu amigo. É viúvo e reformado. Pequeno, escuro e ossudo. O álcool secou-lhe as carnes e soltou-lhe a verve. E aqui tem, leitor, em duas ou três penadas a apresentação civil, física e psicológica do Senhor Américo. Adiante.
À mesa do “Rei dos Galos” desbravámos os esconsos da sua memória à força de absinto e cerveja. Durante horas falámos do Porto, da gente do Porto, do cheiro do Porto: uma mescla de iscas de bacalhau, carapau frito, detergente da roupa e mijo, com o granito húmido por fundo.
Falámos da identidade desta gente, que se confunde com a identidade das pedras, que se confunde com a identidade do rio, que se confunde com o nevoeiro. Falámos dessas pessoas de identidade nebulosa que preenchem sozinhas os bancos dos tascos à procura que os tascos as preencham a elas. Pessoas nebulosas só até nos sentarmos à sua mesa e as começarmos a desenhar com a nitidez que merecem. Nessa altura fazem como qualquer solitário em qualquer parte do mundo: falam até se desunharem. Só nos resta ouvi-los e procurar compreendê-los. Exercício inútil pois pertencem a outra raça que não fala a nossa língua.
Falámos dessa raça de homens em extinção. Uma raça que possui um conhecimento único: o conhecimento do ritmo do Porto medieval. Um ritmo que só é possível nestas ruas usadas, nestas vielas escuras, nestas escadarias manhosas, nestes empedrados gastos, nestas paredes esguias, nestes tascos sujos e encantadores.
O Senhor Américo faz parte dessa raça de homens: Os Filósofos de Tasco. Estes homens enormes e magníficos são, no entanto, hiper-sensíveis à mudança. Tirem-lhes o traçadinho, a patanisca de bacalhau e o café com cheirinho e estes homens desaparecem.
Falámos, sem ilusões, de como daqui a uma geração já nada vai restar destas academias de vida: “A minha universidade foi a rua, senhor doutor.” Em nome de uma Europa civilizada e acética, o alumínio e as embalagens de plástico exterminarão qualquer bactéria, fungo ou mau cheiro destas nossas ruas e tascos. Um efeito colateral: destruirão também qualquer autenticidade, nobreza e filosofia destas ruas e tascos.
Falámos da urgência em registar a história oral e a filosofia de tasco desta raça de homens em extinção. Falámos de tudo isso e falámos de muito mais e quando, há segunda tentativa, me levantei cambaleante para me ir embora, o Senhor Américo continuava calado, como sempre esteve durante toda esta nossa conversa.

Rupert Tempest

- texto publicado na revista Um Café em Fevereiro de 2008

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