quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

19h00 no Tasco

A Adega Serralves, mesmo ali na Rua de Serralves ao lado do museu, é um estranho caso de sucesso comercial em tempo de crise. Quando inúmeros tascos desta cidade fecham por falta de clientes é um mistério como o senhor António Carlos consegue manter todos os dias casa cheia até altas horas da madrugada. Estas enchentes não se devem aos snobs de Serralves nem a turistas que se enganaram na exposição, mas sim a umas dezenas de clientes fiéis que para aí se dirigem ao fim do dia e por lá ficam em infindáveis horas de cavaqueira, jogo e bebedeira. É verdade que aqui os buchos são do melhor que se come pelo Porto e o tintol da casa não fica atrás, mas ainda assim ninguém consegue explicar esta estranha fidelidade da clientela da Adega de Serralves.

Foi com estes pensamentos em mente que José Henrique Vasques entrou na Adega quando o relógio em cima do balcão marcava as 19h00. Pediu o primeiro brandie da tarde e dirigiu-se para a mesa do costume para junto dos seus companheiros de tertúlia. José Vasques não podia deixar de se sentir um pouco deslocado àquela mesa. Como qualquer filósofo de tasco tinha por hábito julgar os outros por aquilo que fazem e dizem, ao mesmo tempo que exigia que o julgassem a ele por aquilo que planeava um dia fazer e dizer. Como é que qualquer coisa que o Sebastião Rodinhas ou o Júlio Tanso dissessem podia ser comparado com os vinte tomos de capa dura e letra bem apertadinha que José Vasques um dia iria encher com as suas elucubrações metafísicas? Simplesmente, não podia.

Sempre ciente da sua superioridade intelectual o Vasques foi, mesmo assim, conversando e bebericando noite dentro, emborcando brandies e traçadinhos enquanto contava mentalmente as páginas que faltavam para terminar a sua grande obra.
Ao décimo quinto copo levantou-se para se ir embora, dirigiu-se ao balcão e pediu “um bagaço para o caminho”. No entanto, ao olhar para o relógio viu que este ainda marcava as 19h00. “É mais cedo do que eu pensava”, pensou. Pediu uma dose de vinho tratado “para limpar a garganta”, empurrou com as mãos o balcão de madeira que suavemente deslizou para longe de si e, seguindo uma chicane imaginária, deu sete ou oito passos de volta à mesa imitando um bezerro recém-nascido a escorregar na placenta.
Deixou-se cair na cadeira e desta vez pôs-se a contar as páginas que faltavam para começar a escrever a sua grande obra. Nesse monumental tratado, que irá doar à biblioteca de Freixo de Espada à Cinta (terra de seus pais), José Vasques revelará por fim todas aquelas ideias que tem mantido conservadas em álcool etílico desde a tenra adolescência. Esses vinte tomos resolverão de uma acentada todos os grandes mistérios que preocupam a humanidade desde os gregos: Somos livres? Qual o sentido da vida? Deus existe? E se existe, brinca aos dados? O que é uma providência cautelar? A mente é separada do corpo? Se sim, porque é que se apaga quando inundamos o corpo com álcool?

Um mistério, porém, José Vasques sabe que jamais irá resolver: como é que, em tempo de crise, o senhor António Carlos mantém sempre uma clientela tão fiel à sua Adega? Este é um mistério que estará para sempre fora do alcance das nossas capacidades cognitivas. Pelo menos até que o senhor António Carlos dê corda ao relógio.

Rupert Tempest

- texto publicado na revista Um Café em Julho de 2008

Sem comentários:

Enviar um comentário