quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O Kapo d´A Floresta e os "20 do Valbom"

Foi precisamente na altura em que o senhor Jesualdo, dono do tasco A Floresta de Pereiró em Ramalde, me colocava diante dos olhos a conversão em €uros de uma noite passada a beber espumante Raposeira e a trincar tremoços alentejanos numerados, com vinte elementos do “Grupo Excursionista do Valbom”, que me apercebi do verdadeiro significado do nome do grupo: quando a conta chega à mesa já os vinte abalaram em excursão de volta ao Valbom.

Num microsegundo visualizei a nota de 5€ que trazia na carteira e que era claramente deficitária em pelo menos dois zeros para cobrir a conta que os vinte do Valbom me deixaram para pagar.
No microsegundo seguinte imaginei-me a fazer as delícias sodomitas do tasqueiro, pouco sensibilizado com os meus pedidos de clemência, enquanto me fazia saldar a dívida à boa e velha maneira maneira dos gregos.

A situação apresentava-se delicada e pedia uma acção decidida e enérgica.
Ao fundo do tasco conseguia ver a porta da rua entreaberta mas sabia que, por esta altura, dificilmente lá chegaria sem a ajuda de garrafas de oxigénio e dois guias Sherpas.
Em contraste com a minha condição de ébrio miserável, o senhor Jesualdo aparentava estar no auge da sua forma física. Como um kapo em Auschwitz o senhor Jesualdo encarava-me hirto por detrás do balcão. Todo ele era músculos tensos e espírito lúcido como um puro sangue árabe, fixando-me o olhar penetrante como um touro enraivecido. O seu olhar era, de facto, tão penetrante que tive de colocar uma placa de titânio à minha frente não me fosse atingir algum orgão vital. O abdómen proeminente, lançado para a frente como um ovo kinder gigante indicava que este magnífico espécime me podia dar caça aos rebolões de Ramalde ao Turquemenistão.
Definitivamente não havia escapatória. O meu futuro próximo afigurava-se negro e… muito próximo.

Foi então que, miraculosamente, o senhor Jesualdo foi atingido no pescoço por um dardo envenenado disparado por uma zarabatana da sumatra que, sabe-se lá como, veio parar às minhas mãos. O veneno utilizado não era fatal, apenas adormecia a vítima o tempo suficiente para eu acabar de beber o meu espumante, levantar-me e sair calmamente para a rua como se nada tivesse acontecido.
O meu brilhante plano foi repentinamente gorado por alguns clientes alarmados com o que parecia um ataque cardíaco fulminante do senhor Jesualdo e que imediatamente chamaram o INEM.
A minha experiência dizia-me que o dardo de 20 cm alojado na carótida do senhor Jesualdo levantaria algumas dúvidas quanto à verdadeira causa do seu colapso pelo que, para não chamar as atenções sobre mim, escondi a zarabatana nas calças disfarçada de clister. Agora era só esperar que a confusão passasse para poder sair calmamente porta fora.
Este meu plano alternativo tinha tudo para correr bem não fosse um pequeno descuido intestinal disparar inadvertidamente outro dardo envenenado que se foi alojar no meu pé esquerdo, adormecendo imediatamente a perna que a ele estava acoplada.

Fui obrigado a esperar sentado umas doze horas até o efeito do veneno passar, tendo ocupado o meu tempo a beber de um pipo de madeira numa prateleira em cima de mim e a pensar em como, lamentavelmente, a honestidade, a sinceridade e o respeito pelo próximo já não são valores que preocupem as sociedades actuais.
Quando finalmente o meu membro adormecido se libertou dos braços de Morfeu já o senhor Jesualdo tinha regressado ao seu posto de vigia atrás do balcão, observando-me desafiador e implacável.

Escrevo estas linhas sentado na mesa de fundo d´A Floresta de Pereiró esperando que algum leitor se apiede da minha condição de prisioneiro e se ofereça para vir pagar a conta e aplacar a fúria do kapo.


Rupert Tempest

- texto publicado na revista Um Café em Setembro de 2008

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