Quando nos idos anos 90 do século passado o Olavo “Perninhas” decidiu organizar no Tasco Baixa-a-Tola, ali junto à Avenida Gustavo Eiffel, o primeiro Encontro de Filósofos de Tasco (EFITASCO I) estava longe de adivinhar que tal iniciativa iria descambar numa verdadeira batalha campal onde as armas da retórica acabariam por dar lugar às armas de arremesso enquanto instrumento privilegiado da dialéctica filosófica. Para que conste, foram os acontecimentos dessa fatídica noite que aqui vos vou relatar que ditaram o fim do Baixa-a-Tola, esse mítico botequim do morro das Fontaínhas.
O primeiro a ocupar o palanque foi o Chico “China”. Chapeiro de dia, filósofo heideggeriano de noite, o “China” dividia o seu tempo entre o bate chapas na oficina e a bate papo filosófico no tasco. Naquela noite tinha finalmente a oportunidade de mostrar o que valia e revelar o resultado de anos e anos de profundas investigações e incisivas disputas metafísicas pelos melhores tascos do tripeiro burgo.
A plateia estava bem composta. Familiares, amigos e adversários do “China” formavam um público bastante heterogéneo que, em termos da massa crítica, quase igualavam o nível médio dos figurantes das Tardes da Júlia na TVI. Era num clima bafiento e pesado que todos esperavam expectantes as primeiras palavras do filósofo. À hora combinada o “China” levantou-se, afinou a garganta com um copo de bagaço e um escarro, tossiu para chamar a si as atenções e começou:
“A dimensão ôntica do ser heideggeriano – seja enquanto dimensão totalitária, seja enquanto dimensão totalizante – só almeja o ser-aí enquanto proximidade e acercamento áquele-mesmo, enquanto si-mesmo na fronteira do si-outro."
Fez uma curta pausa para que as suas palavras pudessem ser devidamente absorvidas pelos basbaques à sua frente, e continuou:
"A gramatologia hodierna conjuga ser e não ser enquanto duas faces distintas de um ser-algures, incerto, putativo, escorregadio e…”
… e antes de concluir o seu raciocínio “China” foi violentamente interrompido por um paralelo da calçada, arremessado contra a sua cabeça por Adriano “Casca”, que lhe tirou momentaneamente o dom da palavra e da consciência de si.
Como uma faísca num armazém de pólvora rebentou a confusão. De um lado os que defendiam que o ser-aí do “Casca” não tinha nada que ter agredido o ser-ali do “China” com um objecto ôntico de tamanha dimensão. Do outro lado aqueles para quem o discurso do “China” não passava de uma série de balelas pseudo-filosóficas sem sentido algum, e para quem o objecto ôntico em questão tinha o tamanho apropriado para o desígnio pretendido.
O que a seguir se passou assemelhou-se a um fim-de-ano na Madeira numa só divisão da casa. Voavam cadeiras, armários e mesas com a velocidade e o descontrolo de um acelerador de partículas ao qual retiraram o botão do Stop.
Pouco passava das 22h00 quando o corpo de intervenção da PSP foi chamado a intervir. O guarda Costa parou a sua DT LC à porta do tasco, porfiou o bigode, deu dois ou três passos em frente, ainda mal tinha um pé dentro do Baixa-a-Tola e já estava a levar com um banco corrido na focinheira. “Baixa a Tola, ó moina!”, ainda ouviu dizer antes de colidir na horizontal com o passeio.
Pouco passava das 22h10 quando o corpo de intervenção da PSP dava entrada nas urgências do Santo António com um hematoma na testa e um olho ao dependuro.
A disputa filosófica continuou noite dentro até que o “Perninhas” desligou as luzes e deu dois tiros para o ar, furando os canos do andar de cima e inundando o Baixa-a-Tola em menos tempo de a Rosa do 1ª andar dar conta de dois novos furos no baixo ventre.
Foi a debandada geral – os filósofos de tasco são alérgicos a água. Os participantes na discussão regressaram a suas casas, cada um com a certeza que esgrimira os melhores argumentos de que era capaz e quase todos com as marcas no corpo dos argumentos contrários.
O China” acabou por morrer afogado pois ninguém se lembrou de o chamar de novo à consciência após os acontecimentos relatados. O Baixa-a-Tola nunca mais voltou a abrir em sinal de luto pelo grande filósofo.
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Agosto de 2008
210º CAFÉ FILOSÓFICO_RELIGIÃO E CONHECIMENTO
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