quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
De olhos bem abertos
Fiquei mais de três meses à espera que algum leitor generoso me fosse aliviar o calote, ou que o editor deste pasquim ranhoso se chegasse à frente com os sete meses de Filósofos de Tasco que me deve. Nada disso aconteceu (nem generosidade por parte dos leitores nem cumprimento contratual por parte do editor) pelo que me tenho arrastado desde então pelos bancos e mesas d´A Floresta de Pereiró e a isso se deve o intervalo de quatro meses desde a última crónica.
Durante essa minha longa estadia no tasco não podia dar a entender ao senhor Jesualdo que não tinha dinheiro para pagar a conta e que estava apenas à espera de uma brecha na sua vigilância para me escapulir porta fora. Por esse motivo vi-me forçado a ir inflacionando gradualmente a dívida de traçadinhos e vermutes, que ia bebendo ao ritmo de batimentos cardíacos cada vez mais acelerados. Quanto mais crescia a pilha de copos vazios sobre a mesa e, proporcionalmente, a fila de zeros na conta por pagar, mais o senhor Jesualdo se mostrava desconfiado. Por esta altura já limitara a ronda de vigilância à minha mesa, em torno da qual dava voltas e voltas como um cão de fila bem treinado.
Durante 120 dias e 120 noites o canídeo não descolou os olhos de cima de mim, demonstrando, pensava eu, uma incrível capacidade de resistência ao sono.
Foi apenas quando os vermutes e os traçadinhos começaram a multiplicar por três as minhas percepções visuais que percebi o que realmente se passava. Uma oportuna epifania literária trouxe-me à consciência o velho Homero e, em particular, aquele episódio relatado na Odisseia do enorme cão de três cabeças, Cérbero, que guardava a saída do Hades recorrendo à seguinte estratégia: dormia de olhos abertos e vigiava de olhos fechados devorando dessa forma os que tentavam fugir na hora do seu “descanso”. Seria possível que o tasqueiro usasse o mesmo truque que Cérbero parecendo desperto e vigilante quando na verdade estava a dormir tão profundamente quanto uma viga de aço?
Foi nessa altura que vendo o seu rosto vermelho e inflamado, olhos esbugalhados a menos de um palmo da minha cara resolvi tentar a fuga. Arrisquei alguns passos tímidos em volta da mesa só para o testar e lá continuava o kapo, firme e hirto de olhos cada vez mais abertos, como que incrédulo, a olhar na minha direcção. Não havia dúvida alguma, pensei, estava mesmo a dormir de pé.
Contente por ter descoberto a sua artimanha resolvi vingar-me do velho Jesualdo remodelando-lhe o estabelecimento comercial à moda de Falujah, no Iraque.
Mesas e cadeiras voavam alegremente pelo ar. Garrafas de aguardadente e pipos de vinho da casa tentavam a todo o custo colar-se às paredes, estilhaçando-se em mil pedaços após o embate. A máquina de amendoins foi aberta à martelada e o expositor dos rissóis foi dizer olá! ao urinol. Enquanto isto o senhor Jesualdo mantinha-se de pé com aquela sua expressão de louco prestes a explodir, olhos bem esbugalhados e fixos em mim, que aterrorizaria qualquer um que não soubesse o seu segredo: que na verdade dormia profundamente. Aproximei-me da sua figura imponente, olhei-o directamente nos olhos, como não tivera coragem de fazer até então e, durante longos minutos, jorrei-lhe para os pés um mijo dourado de vingança deleitosa pelos 4 meses que ali ficara preso naquele tasco fétido, vítima do seu ardiloso embuste.
Acabado o serviço corri a passos largos para a minha tão desejada liberdade, partindo garrafas e copos à esquerda e à direita à medida que alegremente me aproximava da porta da rua. Apenas dois bancos corridos se entrepunham entre mim e o meu Shangri-la quando subitamente embati de frente contra o enorme cajado que o senhor Jesualdo fez girar na minha direcção num movimento circular paralelo ao chão e à altura da minha cara.
Um estridente catchiiim! ecoou pelo quarteirão enquanto o meu corpo fazia às vezes de esfregona ensanguentada, percorrendo o chão em busca de 32 dentes e um par de óculos.
Voltei para a mesa e pedi mais uma garrafa de aguardente que emborquei sofregamente enquanto o senhor Jesualdo fazia as contas ao prejuizo e chamava o cunhado e os filhos para uma sessão de pugilato gratuito aqui com o desdentado.
Ainda me arrastei pelo tasco mais uns dias com dores permanentes até que finalmente consegui sair. Tive de esperar que o senhor Jesualdo morresse de causas naturais após a ingestão de 5 pastilhas de Ratax escondidas na sandes de paio, que naturalmente o lançaram pelo chão numa dança convulsiva em torno da própria barriga.
O tasco A Floresta de Pereiró continua em funcionamento, agora com nova gerência que aproveita a oportunidade para agradecer a visita de todos aqueles leitores que queiram provar o nosso delicioso vinho da casa e deliciar-se com os nossos petiscos, especialmente as nossas famosas sandes de paio.
Rupert Tempest
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
O Kapo d´A Floresta e os "20 do Valbom"
Num microsegundo visualizei a nota de 5€ que trazia na carteira e que era claramente deficitária em pelo menos dois zeros para cobrir a conta que os vinte do Valbom me deixaram para pagar.
No microsegundo seguinte imaginei-me a fazer as delícias sodomitas do tasqueiro, pouco sensibilizado com os meus pedidos de clemência, enquanto me fazia saldar a dívida à boa e velha maneira maneira dos gregos.
A situação apresentava-se delicada e pedia uma acção decidida e enérgica.
Ao fundo do tasco conseguia ver a porta da rua entreaberta mas sabia que, por esta altura, dificilmente lá chegaria sem a ajuda de garrafas de oxigénio e dois guias Sherpas.
Em contraste com a minha condição de ébrio miserável, o senhor Jesualdo aparentava estar no auge da sua forma física. Como um kapo em Auschwitz o senhor Jesualdo encarava-me hirto por detrás do balcão. Todo ele era músculos tensos e espírito lúcido como um puro sangue árabe, fixando-me o olhar penetrante como um touro enraivecido. O seu olhar era, de facto, tão penetrante que tive de colocar uma placa de titânio à minha frente não me fosse atingir algum orgão vital. O abdómen proeminente, lançado para a frente como um ovo kinder gigante indicava que este magnífico espécime me podia dar caça aos rebolões de Ramalde ao Turquemenistão.
Definitivamente não havia escapatória. O meu futuro próximo afigurava-se negro e… muito próximo.
Foi então que, miraculosamente, o senhor Jesualdo foi atingido no pescoço por um dardo envenenado disparado por uma zarabatana da sumatra que, sabe-se lá como, veio parar às minhas mãos. O veneno utilizado não era fatal, apenas adormecia a vítima o tempo suficiente para eu acabar de beber o meu espumante, levantar-me e sair calmamente para a rua como se nada tivesse acontecido.
O meu brilhante plano foi repentinamente gorado por alguns clientes alarmados com o que parecia um ataque cardíaco fulminante do senhor Jesualdo e que imediatamente chamaram o INEM.
A minha experiência dizia-me que o dardo de 20 cm alojado na carótida do senhor Jesualdo levantaria algumas dúvidas quanto à verdadeira causa do seu colapso pelo que, para não chamar as atenções sobre mim, escondi a zarabatana nas calças disfarçada de clister. Agora era só esperar que a confusão passasse para poder sair calmamente porta fora.
Este meu plano alternativo tinha tudo para correr bem não fosse um pequeno descuido intestinal disparar inadvertidamente outro dardo envenenado que se foi alojar no meu pé esquerdo, adormecendo imediatamente a perna que a ele estava acoplada.
Fui obrigado a esperar sentado umas doze horas até o efeito do veneno passar, tendo ocupado o meu tempo a beber de um pipo de madeira numa prateleira em cima de mim e a pensar em como, lamentavelmente, a honestidade, a sinceridade e o respeito pelo próximo já não são valores que preocupem as sociedades actuais.
Quando finalmente o meu membro adormecido se libertou dos braços de Morfeu já o senhor Jesualdo tinha regressado ao seu posto de vigia atrás do balcão, observando-me desafiador e implacável.
Escrevo estas linhas sentado na mesa de fundo d´A Floresta de Pereiró esperando que algum leitor se apiede da minha condição de prisioneiro e se ofereça para vir pagar a conta e aplacar a fúria do kapo.
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Setembro de 2008
O Fim do Baixa-A-Tola
O primeiro a ocupar o palanque foi o Chico “China”. Chapeiro de dia, filósofo heideggeriano de noite, o “China” dividia o seu tempo entre o bate chapas na oficina e a bate papo filosófico no tasco. Naquela noite tinha finalmente a oportunidade de mostrar o que valia e revelar o resultado de anos e anos de profundas investigações e incisivas disputas metafísicas pelos melhores tascos do tripeiro burgo.
A plateia estava bem composta. Familiares, amigos e adversários do “China” formavam um público bastante heterogéneo que, em termos da massa crítica, quase igualavam o nível médio dos figurantes das Tardes da Júlia na TVI. Era num clima bafiento e pesado que todos esperavam expectantes as primeiras palavras do filósofo. À hora combinada o “China” levantou-se, afinou a garganta com um copo de bagaço e um escarro, tossiu para chamar a si as atenções e começou:
“A dimensão ôntica do ser heideggeriano – seja enquanto dimensão totalitária, seja enquanto dimensão totalizante – só almeja o ser-aí enquanto proximidade e acercamento áquele-mesmo, enquanto si-mesmo na fronteira do si-outro."
Fez uma curta pausa para que as suas palavras pudessem ser devidamente absorvidas pelos basbaques à sua frente, e continuou:
"A gramatologia hodierna conjuga ser e não ser enquanto duas faces distintas de um ser-algures, incerto, putativo, escorregadio e…”
… e antes de concluir o seu raciocínio “China” foi violentamente interrompido por um paralelo da calçada, arremessado contra a sua cabeça por Adriano “Casca”, que lhe tirou momentaneamente o dom da palavra e da consciência de si.
Como uma faísca num armazém de pólvora rebentou a confusão. De um lado os que defendiam que o ser-aí do “Casca” não tinha nada que ter agredido o ser-ali do “China” com um objecto ôntico de tamanha dimensão. Do outro lado aqueles para quem o discurso do “China” não passava de uma série de balelas pseudo-filosóficas sem sentido algum, e para quem o objecto ôntico em questão tinha o tamanho apropriado para o desígnio pretendido.
O que a seguir se passou assemelhou-se a um fim-de-ano na Madeira numa só divisão da casa. Voavam cadeiras, armários e mesas com a velocidade e o descontrolo de um acelerador de partículas ao qual retiraram o botão do Stop.
Pouco passava das 22h00 quando o corpo de intervenção da PSP foi chamado a intervir. O guarda Costa parou a sua DT LC à porta do tasco, porfiou o bigode, deu dois ou três passos em frente, ainda mal tinha um pé dentro do Baixa-a-Tola e já estava a levar com um banco corrido na focinheira. “Baixa a Tola, ó moina!”, ainda ouviu dizer antes de colidir na horizontal com o passeio.
Pouco passava das 22h10 quando o corpo de intervenção da PSP dava entrada nas urgências do Santo António com um hematoma na testa e um olho ao dependuro.
A disputa filosófica continuou noite dentro até que o “Perninhas” desligou as luzes e deu dois tiros para o ar, furando os canos do andar de cima e inundando o Baixa-a-Tola em menos tempo de a Rosa do 1ª andar dar conta de dois novos furos no baixo ventre.
Foi a debandada geral – os filósofos de tasco são alérgicos a água. Os participantes na discussão regressaram a suas casas, cada um com a certeza que esgrimira os melhores argumentos de que era capaz e quase todos com as marcas no corpo dos argumentos contrários.
O China” acabou por morrer afogado pois ninguém se lembrou de o chamar de novo à consciência após os acontecimentos relatados. O Baixa-a-Tola nunca mais voltou a abrir em sinal de luto pelo grande filósofo.
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Agosto de 2008
19h00 no Tasco
Foi com estes pensamentos em mente que José Henrique Vasques entrou na Adega quando o relógio em cima do balcão marcava as 19h00. Pediu o primeiro brandie da tarde e dirigiu-se para a mesa do costume para junto dos seus companheiros de tertúlia. José Vasques não podia deixar de se sentir um pouco deslocado àquela mesa. Como qualquer filósofo de tasco tinha por hábito julgar os outros por aquilo que fazem e dizem, ao mesmo tempo que exigia que o julgassem a ele por aquilo que planeava um dia fazer e dizer. Como é que qualquer coisa que o Sebastião Rodinhas ou o Júlio Tanso dissessem podia ser comparado com os vinte tomos de capa dura e letra bem apertadinha que José Vasques um dia iria encher com as suas elucubrações metafísicas? Simplesmente, não podia.
Sempre ciente da sua superioridade intelectual o Vasques foi, mesmo assim, conversando e bebericando noite dentro, emborcando brandies e traçadinhos enquanto contava mentalmente as páginas que faltavam para terminar a sua grande obra.
Ao décimo quinto copo levantou-se para se ir embora, dirigiu-se ao balcão e pediu “um bagaço para o caminho”. No entanto, ao olhar para o relógio viu que este ainda marcava as 19h00. “É mais cedo do que eu pensava”, pensou. Pediu uma dose de vinho tratado “para limpar a garganta”, empurrou com as mãos o balcão de madeira que suavemente deslizou para longe de si e, seguindo uma chicane imaginária, deu sete ou oito passos de volta à mesa imitando um bezerro recém-nascido a escorregar na placenta.
Deixou-se cair na cadeira e desta vez pôs-se a contar as páginas que faltavam para começar a escrever a sua grande obra. Nesse monumental tratado, que irá doar à biblioteca de Freixo de Espada à Cinta (terra de seus pais), José Vasques revelará por fim todas aquelas ideias que tem mantido conservadas em álcool etílico desde a tenra adolescência. Esses vinte tomos resolverão de uma acentada todos os grandes mistérios que preocupam a humanidade desde os gregos: Somos livres? Qual o sentido da vida? Deus existe? E se existe, brinca aos dados? O que é uma providência cautelar? A mente é separada do corpo? Se sim, porque é que se apaga quando inundamos o corpo com álcool?
Um mistério, porém, José Vasques sabe que jamais irá resolver: como é que, em tempo de crise, o senhor António Carlos mantém sempre uma clientela tão fiel à sua Adega? Este é um mistério que estará para sempre fora do alcance das nossas capacidades cognitivas. Pelo menos até que o senhor António Carlos dê corda ao relógio.
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Julho de 2008
Na Cabeça de Lino Bouças
O meu mais recente objecto de estudo foi Lino Bouças, um galego há muito emigrado no Porto. Vi-o pela primeira vez no tasco A Gandarela, ali na rua da Bainharia. Sentado sozinho ao balcão, tentava tirar um pedaço de presunto alojado no molar com a subtileza de um caterpilar a servir morangos numa vernisage.
Lino Bouças é viciado em engenharia pela FEUP e licenciado em heroína pelo Bairro do Lagarteiro. Há já vários anos que o vemos entrar e sair de clínicas de desintoxicação, mas as recaídas costumam levar a melhor. A ele se devem cinco das seis pontes que unem o Porto a Gaia.
Entrar na sua cabeça não é difícil, a dona Conceição faz lá as limpezas às terças-feiras e franqueia-nos a entrada. Na semana passada éramos uns dez lá dentro a jogar dominó, esforçando-nos por manter as peças direitas enquanto o Bouças subia a escadaria das Aldas tropeçando em todos os degraus e apoiando-se às paredes para manter uma postura que, em termos evolucionários, o colocava algures entre a lesma e o homo erectus.
Subia a custo os últimos degraus quando o derradeiro centilitro de Vermute lhe inunda o hipotálamo. Nessa altura o seu sistema sensório-motor decidiu regressar ao tasco para atestar, deixando o pobre do Bouças entregue à lei da queda dos corpos escadaria das Aldas abaixo e lançando as nossas peças de dominó num voo descontrolado contra as paredes do seu crânio quais pipocas numa panela a escaldar.
Nada que não estivéssemos à espera, pois todas as terças-feiras este cenário se repetia invariavelmente. Entre as gargalhadas do costume apanhámos as peças caídas, distribuímos mais uma rodada de minis, baralhámos de novo e íamos começar outro jogo quando aconteceu o inesperado. Lá fora uns miúdos resolveram divertir-se às custas do Bouças, amarrando-lhe um fio do norte à perna e prendendo-o ao camião do lixo que entretanto passava. Então foi ver o Bouças arrastado pela perna rua da Bainharia acima a tamborilar com a cabeça no granito ao longo de uns bons duzentos e cinquenta metros.
Agora as pipocas éramos nós, a ricochetear contra as paredes juntamente com as mesas, as cadeiras, os copos, as peças do dominó e as muletas do Pacheco, até que o fio se partiu em frente à estátua do Vímara Peres e acabámos todos empilhados num monte junto ao canto inferior do hemisfério esquerdo do Bouças, que ficou estendido no chão enquanto uns transeuntes o tentavam reanimar dando-lhe pontapés no estômago.
Levantámo-nos a custo e, depois de trinta minutos a tentar virar os joelhos do Pacheco para a frente, desistimos do jogo de dominó e resolvemos ir malhar umas bifanas à Filha da Mãe Preta na Ribeira. Alguns de nós ainda tentaram reanimar o Bouças dando-lhe pontapés no estômago mas ele não dava acordo e seguimos caminho.
Já tínhamos meio caminho andado quando, a descer as escadas do Barredo, um abanão tremendo que mais parecia um enorme sismo nos deitou por terra, deixando-nos novamente prostrados uns por cima dos outros. Ao que parece, alguém se lembrou de meter o Bouças na mala de uma furgoneta e de o levar numa corrida desenfreada para o hospital, não respeitando sinais vermelhos, sentidos proibidos, traços contínuos, passeios ou rotundas.
Nessa noite não houve bifanas para ninguém. Acabámos todos no Santo António, onde ainda hoje nos encontramos à espera que o Bouças saia de coma, ou então que a dona Conceição nos venha abrir a porta na próxima terça-feira.
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Junho de 2008
A Verdadeira Filosofia de Tasco
Enquanto Provedor do Leitor da “Um Café”, cargo que aceitei a troco de quinze mil euros mensais, vejo-me na obrigação de dar mais atenção aos mails que nos chegam que aquela que realmente merecem. Na verdade, passados nem três minutos de os ler lembro-me tão bem da maioria deles como da aula de Social Studies que tive no dia 21 de Novembro de 1976 no meu liceu em Ipswich. No entanto, e para sossegar o meu prezado editor, aqui vão três excertos de três cartas que recebemos esta semana escolhidas aleatoriamente.
“Na vossa crónica Filósofos de Tasco estão a denegrir algo do mais genuíno e rico que há em Portugal: o tasco.” – Augusto Peres Inácio, Porto
“Filósofos de Tasco não passa de um exercício de esnobeira filisteia. Uma verborreia insultuosa para a nossa classe popular, aí representada pelo pior da nossa sociedade. Ao senhor Rupert Tempest, ou quem quer que se esconda por detrás desse nome ridículo, aconselho-o a visitar realmente um tasco, a abrir bem os olhos e os ouvidos – se precisar leve um intérprete – e a reproduzir aqui as conversas reais dessas universidades de vida.” – Luís Carrascalão, St. Tirso
“A crónica do senhor Tempest encontra-se pejada de figuras bêbedas, violentas e estúpidas, repetindo ad nauseam estereótipos falsos e danosos para a dignidade do nosso povo, para não dizer da nossa espécie.” – Alcino Teixeira, Porto
Depois do ver no dicionário o significado de pejado resolvi acatar as recomendações que me foram dirigidas pelos leitores e reproduzir aqui fielmente um episódio que presenciei num dos muitos tascos que frequento – sem intérprete – e que representa a “verdadeira filosofia de tasco” que, reconheço, tenho mantido oculta nas crónicas que tenho vindo a escrever para a revista “Um Café”. Aqui vai:
Era uma noite de semana como outra qualquer. O fumo enchia o espaço tornando-o cinzento e quase irrespirável. Estranhamente ninguém falava enquanto o grupo do costume lambia alternadamente um baralho de cartas. Sentia-se uma forte tensão no ar, como se todos soubessem que algo de sublime estava prestes a acontecer.
Encostado a uma parede do fundo percebia-se um vulto que, ao longe, parecia um velho bêbado e, ao perto, um pipo velho entornado em cima da mesa. Ao mesmo tempo que me sentei ao seu lado e pedi um “cheirinho”, Lino Granja levanta-se da mesa do grupo da bisca lambida e bate inadvertidamente com a cabeça no suporte de ferro da televisão. “Ah, como dói!”, exclama, “como dói encontrar-me lançado na existência, como uma pedra projectada por uma mão que não conhece.”
Por essa altura Fernando Mealhada saía do sanitário, onde estivera uma boa meia hora a depurar os intestinos, quando uma epifania o atinge. Apercebe-se de que é impossível ter a certeza se existe alguma coisa de real fora da sua mente. “Para quê pagar a conta”, pensou, “se o mundo inteiro, o tasco incluído, não é mais que uma projecção da minha imaginação?” Ainda não se tinha encostado a porta do sanitário atrás de si e já o Mealhada disparava porta da rua fora com quinze euros em cerveja por pagar.
Vendo isto, Julinho Seixas, que além de um realista empedernido era também amigo do dono do tasco, corre atrás deste solipsista encartado, apanha-o pelo colarinho da camisa e puxa-o de novo para dentro do tasco onde, pacientemente, procura provar-lhe a existência da realidade fora da sua mente, partindo-lhe os ossos da cara de encontro ao balcão.
Mealhada preparava-se para refutar o Seixas apontando a manifesta falácia ad hominem em que a sua argumentação incorria, mas este último não lhe deu qualquer hipótese de pôr em prática a sua conhecida retórica e, para provar definitivamente o seu realismo metafísico, saca da navalha e rasga de um golpe a jugular do pobre Mealhada.
Enquanto gorgolejava saliva e sangue ainda o ouvimos dizer estas palavras que depois mandámos registar na sua lápide e que o projectaram directamente para o panteão dos grandes filósofos mortos: “A morte não é mais que um sonho do qual não se acorda. A vida...glub...glub...glub.”
Felizmente para o Mealhada que Descartes tinha razão! O corpo e a mente são mesmo duas entidades distintas. E foi graças a esta descoberta que pudemos continuar noite dentro a beber copos com o Mealhada enquanto a sua res extensa jazia numa maca a caminho da morgue. Pela primeira vez em muitos anos o Mealhada teve uma boa desculpa para sair do tasco sem pagar: tinha deixado a carteira no corpo.
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Maio de 2008
O Amor no Tasco
Era uma tarde de sábado e estava eu sentado contra a parede do fundo de um botequim mal amanhado, do qual já nem sequer me lembro o nome, a ler na diagonal as obras completas de Platão directamente do grego ático. A luz da sala era fraca, pelo que me via obrigado a iluminar a leitura com velas e copos de gin tónico. Ao desenrolar o manuscrito do diálogo “O Banquete” deparei-me com o seguinte mito contado por Aristófanes a Sócrates e aos restantes convidados de Ágaton:
Segundo Aristófanes no início dos tempos a nossa natureza era dupla, “uma única cabeça, onde assentavam as faces coladas em sentido oposto; quatro orelhas; órgãos genitais em número de dois; e tudo o mais que a partir daqui se possa imaginar.” Ainda segundo Aristófanes, esses primeiros seres humanos, ao mesmo tempo masculinos e femininos, eram “dotados de uma terrível força e resistência” capazes mesmo de desafiar os próprios deuses.
Foi então que Zeus, para enfraquecer a humanidade, não esteve com meias medidas e cortou os homens ao meio “exactamente como se cortam sorvas para as pôr em conservas.” Desde aí encontram-se os homens e as mulheres separados e é a nossa outra metade que infatigavelmente procuramos. “Essa busca incessante tem o nome de amor.” (189a-193)
Continuei por uns instantes a pensar que afinal não somos mais que linguados fora de água eternamente à procura da nossa outra metade, quando algo de surpreendente aconteceu. Levantei os olhos da leitura e lá estava ela, Criseíde, a minha outra metade, cinco mil anos depois, mesmo ali à minha frente atrás do balcão a servir vinho a copo a três unicórnios.
Estava muito diferente, a minha Criseíde. Já em nada se assemelhava à jovem esbelta e formosa que no tempo em que estávamos juntos servia de modelo aos melhores escultores da Época de Ouro Grega – nessas alturas eu punha-me de lado de forma a não aparecer na estátua.
Tinha engordado bastante e mudara o nome para Xana, para não dar nas vistas. Os seus peitos, outrora rijos e cheios, pendiam agora vazios e dengosos sobre o umbigo. No entanto é preciso ver que, como disse atrás, ainda estávamos em 1984. Dez anos mais tarde, já com Manuel Dias Loureiro como Ministro da Administração Interna, as coisas teriam sido diferentes, ou pelo menos não tão descaídas.
Criseíde ostentava agora uma dentadura com uma proeminência mais adequada às vicissitudes da savana africana que a uma utilização urbana comum – a menos que quisesse abrir latas de conserva com os caninos. Em vez da clássica e sempre sensual toga de linho branco, Criseíde envergava agora um fato de treino cor-de-rosa coçado, que também fazia as vezes de pijama. Tudo isto, como é óbvio, não ajudava nada ao meu processo de rememoração da minha amada. Mas se alguma dúvida ainda assolava o meu espírito, os três “gintós” que a seguir emborquei de golada dissiparam-na completamente. Era mesmo ela. Era Criseíde vestida de bimba.
Mas, ora bolas, deixemo-nos de esquisitices. Eu também já não era o belo jovem com abdominais de mármore que fazia furor nos ginásios de Siracusa. Estava cansado sozinho e pronto a reconquistar a minha metade perdida.
Ágil como Ulisses transpus num salto a muralha de Tróia que nos separava, derrubando com os pés a máquina de amendoins de cima do balcão. Estiquei os braços e apertei Criseíde contra o meu corpo com a volúpia própria de quem esteve mais de cinco mil anos afastado da sua amada. Durante quinze minutos voltámos ao nosso estado original de Ser uno e inseparável, agora um pouco mais suado e a tresandar a iscas de bacalhau.
Enquanto a minha cara procurava o seu colo, Criseíde berrava para que a soltasse. Seria apenas uma questão de tempo, pensava eu, até que me reconhecesse e também ela me abraçasse.
Foram precisos quatro garrafões de vinho arremessados contra a minha cabeça, cinco mancebos musculosos e um pé de cabra, para que eu e a minha amada nos voltássemos a separar. Criseíde, aflita, correu escadaria acima certamente para pedir protecção junto do Olímpo, ou simplesmente para limpar a minha baba do pijama.
Cá em baixo, não contentes em ter feito cumprir um desígnio divino, os cinco gandulos, fervorosos adeptos da violência gratuita, levaram-me para uma pequena viela nas traseiras do estabelecimento onde, durante algumas horas, se esforçaram arduamente por me transformar em puré.
Se isto me serviu de lição? Claro que sim. Agora, sempre que quiser emendar a mão de Zeus verifico prudentemente se sai de casa com o meu equipamento de guarda-redes de hóquei.
Rupert Tempest
- texto publicado na revista Um Café em Abril de 2008