Os cinco leitores assíduos da Um Café certamente já repararam que não escrevo esta crónica desde a edição de Setembro do ano passado. Ora, se bem se lembram, fiquei nessa altura impedido de sair do tasco A Floresta de Pereiró compelido pelo dono, o senhor Jesualdo, a saldar a dívida astronómica que um gangue de parolos do Valbom me deixou pendurada para pagar.
Fiquei mais de três meses à espera que algum leitor generoso me fosse aliviar o calote, ou que o editor deste pasquim ranhoso se chegasse à frente com os sete meses de Filósofos de Tasco que me deve. Nada disso aconteceu (nem generosidade por parte dos leitores nem cumprimento contratual por parte do editor) pelo que me tenho arrastado desde então pelos bancos e mesas d´A Floresta de Pereiró e a isso se deve o intervalo de quatro meses desde a última crónica.
Durante essa minha longa estadia no tasco não podia dar a entender ao senhor Jesualdo que não tinha dinheiro para pagar a conta e que estava apenas à espera de uma brecha na sua vigilância para me escapulir porta fora. Por esse motivo vi-me forçado a ir inflacionando gradualmente a dívida de traçadinhos e vermutes, que ia bebendo ao ritmo de batimentos cardíacos cada vez mais acelerados. Quanto mais crescia a pilha de copos vazios sobre a mesa e, proporcionalmente, a fila de zeros na conta por pagar, mais o senhor Jesualdo se mostrava desconfiado. Por esta altura já limitara a ronda de vigilância à minha mesa, em torno da qual dava voltas e voltas como um cão de fila bem treinado.
Durante 120 dias e 120 noites o canídeo não descolou os olhos de cima de mim, demonstrando, pensava eu, uma incrível capacidade de resistência ao sono.
Foi apenas quando os vermutes e os traçadinhos começaram a multiplicar por três as minhas percepções visuais que percebi o que realmente se passava. Uma oportuna epifania literária trouxe-me à consciência o velho Homero e, em particular, aquele episódio relatado na Odisseia do enorme cão de três cabeças, Cérbero, que guardava a saída do Hades recorrendo à seguinte estratégia: dormia de olhos abertos e vigiava de olhos fechados devorando dessa forma os que tentavam fugir na hora do seu “descanso”. Seria possível que o tasqueiro usasse o mesmo truque que Cérbero parecendo desperto e vigilante quando na verdade estava a dormir tão profundamente quanto uma viga de aço?
Foi nessa altura que vendo o seu rosto vermelho e inflamado, olhos esbugalhados a menos de um palmo da minha cara resolvi tentar a fuga. Arrisquei alguns passos tímidos em volta da mesa só para o testar e lá continuava o kapo, firme e hirto de olhos cada vez mais abertos, como que incrédulo, a olhar na minha direcção. Não havia dúvida alguma, pensei, estava mesmo a dormir de pé.
Contente por ter descoberto a sua artimanha resolvi vingar-me do velho Jesualdo remodelando-lhe o estabelecimento comercial à moda de Falujah, no Iraque.
Mesas e cadeiras voavam alegremente pelo ar. Garrafas de aguardadente e pipos de vinho da casa tentavam a todo o custo colar-se às paredes, estilhaçando-se em mil pedaços após o embate. A máquina de amendoins foi aberta à martelada e o expositor dos rissóis foi dizer olá! ao urinol. Enquanto isto o senhor Jesualdo mantinha-se de pé com aquela sua expressão de louco prestes a explodir, olhos bem esbugalhados e fixos em mim, que aterrorizaria qualquer um que não soubesse o seu segredo: que na verdade dormia profundamente. Aproximei-me da sua figura imponente, olhei-o directamente nos olhos, como não tivera coragem de fazer até então e, durante longos minutos, jorrei-lhe para os pés um mijo dourado de vingança deleitosa pelos 4 meses que ali ficara preso naquele tasco fétido, vítima do seu ardiloso embuste.
Acabado o serviço corri a passos largos para a minha tão desejada liberdade, partindo garrafas e copos à esquerda e à direita à medida que alegremente me aproximava da porta da rua. Apenas dois bancos corridos se entrepunham entre mim e o meu Shangri-la quando subitamente embati de frente contra o enorme cajado que o senhor Jesualdo fez girar na minha direcção num movimento circular paralelo ao chão e à altura da minha cara.
Um estridente catchiiim! ecoou pelo quarteirão enquanto o meu corpo fazia às vezes de esfregona ensanguentada, percorrendo o chão em busca de 32 dentes e um par de óculos.
Voltei para a mesa e pedi mais uma garrafa de aguardente que emborquei sofregamente enquanto o senhor Jesualdo fazia as contas ao prejuizo e chamava o cunhado e os filhos para uma sessão de pugilato gratuito aqui com o desdentado.
Ainda me arrastei pelo tasco mais uns dias com dores permanentes até que finalmente consegui sair. Tive de esperar que o senhor Jesualdo morresse de causas naturais após a ingestão de 5 pastilhas de Ratax escondidas na sandes de paio, que naturalmente o lançaram pelo chão numa dança convulsiva em torno da própria barriga.
O tasco A Floresta de Pereiró continua em funcionamento, agora com nova gerência que aproveita a oportunidade para agradecer a visita de todos aqueles leitores que queiram provar o nosso delicioso vinho da casa e deliciar-se com os nossos petiscos, especialmente as nossas famosas sandes de paio.
Rupert Tempest
210º CAFÉ FILOSÓFICO_RELIGIÃO E CONHECIMENTO
Há 10 anos